Este conto integra o livro Baseado Nisso – Liberando o bom humor da maconha, de Ricardo Kelmer
ANIMAÇÃO NO JANTAR
Os pais de Maria Amélia estão impressionados com o namorado da filha, um profundo conhecedor da psicologia dos super-heróis
– PAI, MÃE, esse aqui é o Mingo.
– Boa noite, seo Erandir. Boa noite, dona Gilda.
– Boa noite, Mingo. Sente aí pra jantar.
– Obrigado.
– Gosta de sopa de feijão, Mingo?
– Gosto, dona Gilda.
– Eu sirvo pra você. Maria Amélia, pega mais pão na cozinha.
– Você sempre janta de óculos escuros, Mingo?
– Estou com um probleminha nos olhos.
– Ah.
– Maria Amélia me disse que você está concluindo uma tese de mestrado, Mingo. É verdade?
– É.
– E sobre o que é mesmo?
– Personagens de gibis e desenho animado.
– Interessante.
– O Mingo é um grande estudioso da psicologia dos super-heróis.
– Que bom.
– Quer mais pão, Mingo?
– Aceito.
– No meu tempo os desenhos eram muito bons, educativos, ensinavam coisas boas às crianças. Hoje o que se vê é só porcaria. Muita violência. Muito sangue.
– Concordo com o senhor.
– Na minha opinião, o último desenho que ainda prestava era aquele dos Smurfs. Você assistia?
– Sim.
– O que você acha? Era bom, não era? O Gargamel sempre se dava mal. Isso mostrava às crianças que fazer o mal não compensa. Desenho educativo.
– Quer bolo, Mingo?
– Aceito. Na verdade, seo Erandir, o Gargamel era usuário de LSD.
– Ahn?
– Usuário, sim. O senhor conhece LSD?
– Se eu conheço? Não, mas já li alguma coisa.
– Aquele LSD não era dos melhores, a gente logo via. Atente pro comportamento do Gargamel. Fica a vida inteira perseguindo uns homenzinhos azuis que vestem gorros e fraldinhas. Aprofundando mais, podemos nos perguntar: pra quê ele quer tanto pegar os Smurfs?
– Ahn… Pra comer, né?
– Justamente. O LSD de péssima qualidade potencializa as tendências pedófilas do Gargamel. Isso hoje dá cadeia, o senhor sabe. Sem falar que ele abusava psicologicamente de seu gato, um prato cheio pra sociedade protetora dos animais entrar com um processo contra a produtora do desenho, milhões de dólares.
– Eu nunca tinha pensado nesses termos.
– Tem mais bolo?
– Tem, Mingo, deixa eu servir pra você. Ah, eu gostava mais do Patolino. Ele era muito engraçado, heim, Erandir?
– Eu não gostava, Gilda. Ele era muito agoniado.
– Exato, seo Erandir. O Patolino é o maior cheirador do planeta.
– Cheirador?
– Cocaína, mãe. Cheirador de coca.
– O cara é ligadão demais, seo Erandir. Não para de falar um só instante, tem uns papos muito estranhos. E sofre de mania de perseguição. É tão ligadão que consegue ficar gritando, pulando sem parar, arrancando as penas e batendo a cabeça no chão sem sentir dor.
– Gente, cocaína faz isso?
– Faz, dona Gilda. Uma vez ele cheirou tanto que travou geral.
– Travou geral?
– Exato. Foi uma travada tão violenta que o queixo dele foi bater atrás da cabeça, o senhor lembra?
– Ah, eu gostava tanto do Patolino… Gente, mas por que ninguém nunca disse que ele cheirava cocaína?
– Se dissessem, dona Gilda, os pais não deixariam seus filhos assistir.
– Viu, Gilda? Bem que eu não gostava dele.
– Ah, eu gosto. Quer dizer, depois dessa revelação, já não sei…
– E o Popeye? Aqui na rua tinha uma vizinha do outro lado da rua, a Lindalva, lembra da Lindalva, Gilda? Ela era bem magrinha. A gente chamava ela de Olívia Palito. Influência dos desenhos.
– Olívia Palito. É uma personagem inspirada em muitas mulheres que existem por aí, seo Erandir, mulheres de carne e osso.
– No caso da Lindalva, mais osso que carne.
– Exatamente, dona Gilda. Mas a Olívia é uma personagem tremendamente complexa. Foi a primeira heroína da TV a usar descaradamente anfetaminas e moderadores de apetite. Na verdade ela é anoréxica. E ainda é evangélica.
– Evangélica?
– O senhor nunca reparou? Veja o estilo da roupa: saia abaixo do joelho, blusa fechadinha, tudo muito comportado e sem graça.
– Que coincidência! A Lindalva também era evangélica. Não era, Gilda?
– A Olívia é evangélica, seo Erandir, mas é uma evangélica piradaça, pois fica provocando o Popeye o tempo todo. Faz o coitado gastar uma fortuna tomando Viagra misturado com espinafre. Como se não bastasse, engana o cara o tempo todo com falsas promessas de casamento. E tem mais. A safada adora ser raptada e amarrada pelo Brutus. Sexo selvagem. É a famosa magrinha que aguenta o tranco…
– Isso! Exatamente!
– E o Scooby-Doo, Mingo, fala do Scooby.
– Era um cachorro muito doido. Mas mais doido era o dono.
– Como era mesmo o nome dele?
– Salsicha.
– Isso, Salsicha! Eu não gostava muito dele não. Era assim meio, meio sujo…
– O Salsicha, seo Erandir, é o suspeito número um, o maconheiro típico.
– Ele fumava maconha? Nunca reparei.
– É só ver o jeitão dele, as roupas, o cabelo, o cavanhaque… O maluco conversa com um cachorro e está sempre na maior larica, louco pra traçar um sanduba. Isso sem falar naquele furgão psicodélico: eles se trancavam pra fumar um e saíam de lá vendo fantasma pra todo lado… Mas o Salsicha tinha muita moral com os roteiristas porque mesmo com aquela bandeira toda, nunca levou uma geral dos canas. O Scooby não fumava, mas pegava toda a maresia e por isso também vivia na larica.
– Larica?
– Aquela fome que dá depois de fumar, seo Erandir. Esse bolo tá bom mesmo… Vou pegar mais um pouquinho. Mas voltando ao Scooby. Um cachorro que come, em média, cento e vinte biscoitos por episódio só pode estar totalmente laricado.
– Que coisa… Eu nunca tinha visto por esse lado.
– Fala do Homem-Aranha, Mingo, fala.
– Ah, o Homem-Aranha eu gosto! Lembra, Gilda, que eu tinha a coleção completa? Peter Parker. Esse sim era um super-herói educativo, você não concorda? Trabalhava, cuidava da tia doente, você via que ele era muito apegado a ela.
– Apegado ao dinheirinho que ela guardava na poupança, isso sim. A velha tinha quase cem anos. Já pensou o montante da bufunfa? Um nome mais apropriado pro Homem-Aranha seria Homem-Urubu, pois ele tava ali sempre rondando a tia, esperando a velha morrer pra pegar a herança. E ainda vivia em eterno conflito por não assumir sua bissexualidade.
– O Homem-Aranha era gay?
– Claro. O senhor acha que aquele negócio de ficar soltando teinha de aranha pra lá e pra cá é coisa de homem sério? É o primeiro caso de super-herói que começa a carreira por causa de uma picadura. E o cara é azarado pra cacete: a primeira namorada, uma loiraça rica e boazuda, morreu assassinada pelo Duende Verde. O senhor sabia que Duende Verde é o nome de uma boate gay lá em Pelotas?
– Não sabia.
– Pois é. Super-herói gay tem muito por aí. Tem também o…
– Não sei se quero saber de mais algum…
– Batman.
– Ah, não!
– Ah, sim. Essa é a dupla homossexual mais bandeirosa do mundo dos super-heróis. O clássico exemplo do gay titio que curte garotão. O bofinho esperto, que se aproveita do coroa pra pagar a faculdade. Homem-morcego. Morcego faz o quê, seo Erandir? Sai à noite e chupa fruta. Menino-prodígio. Prodígio em quê? Isso é lá apelido que um homem sério bote no outro! E ainda tem o mordomo.
– O Alfred? Que é que tem ele?
– Aquela pouca-vergonha rolando na bat-caverna, todo dia… O senhor acha que o Alfred não ia saber? Claro que sabia. Se é que não participava também. Aquela cara de diretor de seminário não me engana.
– Gente… Eu tô muito surpresa. Como você descobriu isso tudo, Mingo?
– Pesquisando, dona Gilda, pesquisando…
– Acho que vou proibir o Cacá de assistir TV. Batman, Homem-Aranha… Tudo gay!
– Relaxa, Erandir. Nosso filho gosta é do He-Man.
– Hummm… Logo o He-Man?
– Qual o problema com o He-Man?
– Quer saber mesmo, seo Erandir?
‒ Acho que não…
‒ Gay da geração mais nova, ligada em academia, corpo malhado. Consumidor compulsivo de esteróides. Torra a grana toda com vitamina e energético. E aquele cabelinho chanel? Loira poderosa.
– Não posso acreditar…
– Acredite. O He-Man lançou o “barbie life style” na TV. Sucesso total. E aquele grito dele?
– Ah, isso eu lembro. Pelos poderes de Grayskull! Eu tenho a fooorçaaaa!!!
– Isso na tradução final do estúdio brasileiro, seo Erandir.
– Como assim?
– No original é “Pelos poderes de gay que sou! Eu dou a rosca!”
– Você tem certeza, Mingo? Será que você não se enganou?
– Pense bem, dona Gilda, é muita bandeira. O cara mora num castelo, fica pra lá e pra cá de sunguinha e botinha, malhando o tempo todo, injetando anabolizante… Tem até um tigre de estimação. Fantasia de bicha louca.
– Mas se ele é gay, quem é o outro?
– Ora, quem mais seria? O Esqueleto.
– Cruz credo!
– Aquela risadinha do Esqueleto é muito aviadada, a senhora não acha não? Os dois têm um caso super-mega-mal-resolvido. O Esqueleto, coitado, não se conforma de jeito nenhum com a separação. Por isso é que fica o tempo todo bolando vingancinha, aprontando o maior barraco em público… Bicha vingativa é um horror.
– Bom, pelo menos tem a turma da Mônica pra salvar os gibis…
– Em termos, seo Erandir, em termos…
– Não vá me dizer que a Mônica e o Cebolinha…
– Os dois? Não, não. A Mônica é sapata, estilo caminhoneira, dá porrada em todo mundo.
– Ai, ai. Pelo menos não tem droga no meio…
– Como não tem? E o Rolo? Autêntico bicho-grilo dos anos 70. Barbudo, andava descalço… E o cabelo? Nunca viu um xampu na vida. O cara não trabalhava, passava o dia inteiro viajando nas ideias e tocando um violão faltando uma corda. Bastava ele acender um baseado e botar um Led na vitrola que a Tina vinha correndo dar pra ele.
– A Tina?
– Claro. Mas hoje é diferente. Ela virou hippie de butique, anda toda arrumadinha, tem namorado mauricinho e trocou o baseado por umas caipirinhas no pagode. E com essa moda aí de juntar os personagens, alguém ainda vai criar a história onde o Rolo e o Salsicha desvendam o estranho caso do sumiço da parada.
– Nossa, Mingo, você deve ter pesquisado bastante. Aceita mais um café?
– Aceito. E se não for abusar, vou pegar só mais pedacinho desse bolo, tá muito gostoso.
– Ô, Mingo. Não escapa ninguém nesse seu estudo? A Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Eu não vejo nada ali de maldade…
– Alice, a ninfeta maluquete.
– Ah, não era isso não.
– Comeu sete cogumelos de uma vez só e ficou trilouca, conversando com os bichos mais estranhos do pedaço e fumando haxixe da Turquia num narguilê junto de uma centopeia doidona.
– Cogumelo? Haxixe?
– O haxixe deixou a ninfeta tarada: ela traçou o coelho corredor, o gato listrado, o chapeleiro maluco, e não dispensou nem as cartas de baralho. Só não traçou a rainha porque o efeito passou.
– Estou decepcionada…
– Tem mais, Mingo?
– Ah, não, Erandir! Não quero ouvir mais. Minha infância foi… foi… violentada.
– Desculpe, dona Gilda. Não era minha intenção.
– A gente tem que ir, pai.
– Tá cedo, fiquem mais um pouco.
– Obrigado pelo jantar, dona Gilda. Estava ótimo.
– Apareça mais, Mingo.
– Tchau, pai. Tchau, mãe.
– Juízo, filha.
– Gostei do Mingo, Gilda. Ele deve ser muito estudioso. Só achei estranho aquele óculos escuro. E você viu como ele estava com fome? Quase acabou com o bolo.
– Erandir…
– Sim.
– O que você quis dizer com “exatamente”?
– Como assim?
– Não se faça de desentendido.
– Juro que não estou entendendo.
– Quando ele falou da Olívia Palito, você lembrou da Lindalva, nossa vizinha.
– Ué, você também lembra dela.
– O caso não é esse.
– E qual é o caso?
– Quando ele contou que a Olívia gostava de sexo selvagem com o Brutus e disse que ela era a famosa magrinha que aguentava o tranco, você disse o quê?
– Sei lá.
– Você disse “exatamente”.
– Eu disse isso?
– Disse.
– Tá, eu disse. E qual é o problema?
– Com aquele “exatamente” você quis dizer que sabe que a Lindalva também gosta de sexo selvagem.
– Eu sei disso?
– Erandir, não queira me fazer de boba. Você comeu aquela magricela sem-vergonha?
– Gilda, você está delirando…
– Estou é muito lúcida. Você falou “exatamente” e eu sei o que você quis dizer com isso.
– Danou-se. Agora ninguém mais pode falar “exatamente”…
– Erandir, você comeu ou não comeu?
– Minha filha, você trabalhou muito hoje…
– Não me chame de minha filha!
– Tá bom, tá bom, calma…
– Comeu ou não comeu?
– Quer saber mesmo a verdade?
– Quer mesmo?
– Quero!
– Não comi.
– Não acredito.
– Então não acredite.
– Se não comeu, então o que você quis dizer com “exatamente”?
– Pô, Gilda, eu sei lá o que eu quis dizer com “exatamente”! A gente fala essas coisas pra conversa prosseguir e não porque está concordando…
– Sei.
– Gilda, a gente estava falando da Olívia e não da Lindalva.
– Você estava falando da Lindalva.
– Não, era da Olívia.
– Não era.
– Gilda, de uma vez por todas: eu não comi a Olívia.
– A Lindalva.
– A Lindalva sim. A Olívia não.
– Taí! Eu sabia!!!
– Sabia o quê?
– Você comeu!
– Não comi!
– Você acabou de falar!
– Eu falei?!
– Falou sim. “Comi a Lindalva, a Olívia não.”
– Enlouqueceu? Falei o contrário: comi a Olívia, a Lindalva não. Peraí. Eu também não falei isso. O que foi que eu falei mesmo?
– Erandir, você é desprezível!
– E você me confundiu de propósito.
– Como que você teve a coragem de me trair com aquela, aquela evangélica neurótica?! Aquela tarada que dava em cima dos homens todos dessa rua em nome de Jesus Cristo! Heim? Heim?
– Gilda…
– Você pensa que eu não percebia ela olhando pra você quando você regava as plantas? E aquelas visitinhas que ela fazia pra deixar panfletinho do culto? Eu sabia!
– Gilda…
– O que é?
– Eu te amo.
– Heim?
– Eu disse que eu te amo.
– Não vem com essa!
– Amo sim.
– …
– Eu te amo demais, Gilda…
– Não ama.
– Amo e sempre amei. E nunca vou deixar de amar.
– Você está é querendo mudar de assunto.
– Sabe por quê?
– Por que o quê?
– Por que eu nunca vou deixar de te amar?
– Não.
– Porque você é a heroína dos quadrinhos da minha vida.
– Mentira.
– Verdade.
– Eu te conheço, Erandir…
– E sabe o que um homem tem vontade de fazer com a heroína dos quadrinhos da vida dele?
– Não…
– Comê-la. Todinha. Com papel e tudo.
– Besteira.
– Besteira? Olha aqui o tamanho da besteira.
– Erandir, você é louco! Bota isso pra dentro!
– Só se for pra dentro da minha heroína.
– Erandir, o Cacá…
– Cacá já está no quinto sono.
– Ahn… eu não sei…
– Pois eu sei. Senta aqui.
– Aqui não.
– Tira esse vestido.
– Erandir, é melhor…
– Então eu tiro.
– Não. Deixa que eu tiro. Você sempre arranca os botões.
– Isso, agora vira assim, aqui na mesa.
– Erandir, olha a cafeteira da mamãe…
– Isso, assim mesmo.
– Ai, Erandir…
– Tá bom?
– Tá ótimo…
– Quer Popeye ou Brutus?
– Brutus.
– Então toma, sua safada.
– Ai! Me chama de Olívia…